Wednesday, May 03, 2006

Capoeiras


Artigo excelente:
Em casa dos meus pais havia um quintal. Com uma capoeira.O leitor, que vive num ambiente urbano e só conhece os galináceos embalados num supermercado, não faz ideia dos prazeres que uma capoeira oferece.Ter uma capoeira em casa é ter um galo como despertador às seis e meia da manhã. Não há maneira mais agradável de acordar.Ter uma capoeira em casa é ter um fornecimento de galinhas para dias de festa e ovos frescos para gemadas ao pequeno almoço.Ter uma capoeira em casa é ter uma galinha choca, cujos ovos são guardados à parte. Preparar-lhe uma cama especial onde ela esteja sossegada a chocar os ovos e espreitá-los todos os dias, a ver quando alguma casca começa a estalar.
Aí é preciso ter um certo cuidado. A galinha que, até então, era uma paz-de-alma que deixava que lhe mexessem e espreitassem os ovos a toda a hora, torna-se agressiva. Mesmo que o intruso seja um puto, ela deita-lhe um cróó ameaçador quando ele se aproxima. Pegar no ovo que começa a romper é operação que não se executa sem umas valentes bicadas, enquanto se lhe fala numa voz calma e meiga para a sossegar.Depois, sente-se o calor do ovo e a palpitação do corpo lá dentro. Devagarinho, desprendem-se uma ou duas lascas da casca, as que estão mais soltas, e, suave milagre, vê-se um bico nervoso a furar a pele que ficou por baixo.Não se deve ajudar demasiado o pinto na sua luta contra a casca. Ele precisa do esforço daquela luta, ou cresce como um palerminha que anda para ali a passear, sem força para se espreguiçar numa batida de asas.Para compensar termos-lhe diminuído o desafio de romper a casca, podemos treiná-lo, aos poucos, a voar. Põe-se o pinto na palma da mão, aí a meio metro do chão, e vai-se inclinando a mão até ele ficar sem apoio e ter de saltar. O esbracejar das asinhas é uma delícia para qualquer criança e a brincadeira prossegue até a galinha achar que é esforço demais para o pinto e mandar uma bicada sem aviso na mão do diabo do puto que não dá sossego às crias.Dizem-nos que sem a produção industrial de galinhas em aviários ( e de todos os outros animais, alimentados cientificamente em áreas onde não se podem deitar nem mexer, onde nunca vêem o Sol e onde as luzes permanentes nunca lhes deixam conhecer a noite) não haveria produção de carne suficiente para alimentar a população do globo.Talvez seja verdade, se bem que as piras de carcaças de reses a arder por toda a Europa levantem dúvidas quanto aos métodos usados.Mas as crianças precisavam de conhecer uma capoeira. Talvez as escolas pudessem considerar a hipótese de ter uma ou duas nas suas instalações. Não ocupam muito espaço, não exigem muito equipamento e a venda dos ovos poderia ser uma fonte de receita para ajudar a pagar o aquecimento do edifício, ou uma ou outra reparação.Toda a criança deveria poder assistir ao nascimento de um pinto. O respeito que tal acontecimento desperta pela Vida é mais forte do que lhe poderá ser dado por qualquer catecismo.Se mais crianças houvesse a ver nascer pintos, talvez que, quando crescessem, criassem soluções industriais mais humanas para a produção de carne. E a humanidade seria alimentada com menos ameaças e com menos degradação do ciclo de vida dos animais.( in "A nova sociedade do Consumo" de Beja Santos e Artur Tomé, edição Círculo de Leitores)

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